sábado, 14 de fevereiro de 2009

Chuva.

Era tarde, bem mais tarde que o normal. A noite avançava fria, e uma chuva fina começava a cair. Perdera a última condução e deveria andar mais 2 quarteirões do centro da cidade para pegar um alternativo. Enquanto andava, sentia o vento bater em suas pernas e rosto, fazendo seu nariz gelar e seus pêlos arrepiarem. Estava agarrada às apostilas e pastas que carregava quando debateu com aquela sombra imponente, rígida. Uma trombada de braços.
- Desculpe. - Ouviu de uma voz suave, e segura.
- Tudo bem. - Não entendeu, mas o timbre a desconcertara.
Continuou andando, segurava as pastas tão forte que elas nem se dignaram a cair quando topou com aquele cara.
O que será que ele faz? Qual será o nome dele? Do que será que ele gosta, ou quais seus medos? Estranho pra ela pensar tanta coisa sobre alguém que nem mostrara o rosto, de quem só ouvira a voz.
- Esqueça isso, Lêda. - Cochichou para si, com a voz entrecortada pelo frio que fazia seus dentes baterem.
Mas ela não estava se aguentando. Olhou para trás, mas não via mais a sombra. Decidiu voltar alguns passos e ver se a figura havia entrado numa ruela há uns 10 passos atrás. Já não se importava com o perigo de estar ali, naquele breu, sozinha e desprotegida. Chegou a ruela. Parou na entrada. Olhou várias janelas, umas com luzes abertas, outras com apenas uma luz vermelha aqui ou ali. Começou a andar em direção àquela rua, tão suja e mal-cheirosa como tantos becos do centro. Seu salto entrou num paralelepípedo. Sentiu que fosse um sinal. Apesar do medo que começara a tomar conta de seu ser, o ignorou. Continuou andando, num ritmo compassado junto ao ritmo do seu coração. Viu figuras à espreita, sombras peçonhentas. O ritmo aumentou. Deixou uma apostila cair. Não teve coragem de voltar pra pegar, não tinha coragem de olhar para trás. Já estava num beco sem saída. Não no sentido literal da palavra.
Continuava sua fuga quando se deparou com um homem, na porta de uma dessas casas que tinha a tal da luz vermelha. Será o homem que ela vira há alguns muitos minutos atrás? (sim, sua caminhada parecida ter durado horas). Criou coragem. Já estava ali mesmo, nada poderia ser pior.
- Err.. boa noite.
Ele apenas a olhou maldosamente. A partir daí ela ja tinha certeza que não era o homem da voz suave. "Ele nunca me olharia desse jeito". Por que pensou assim?
- É que estou perdida, pode me dizer o nome dessa rua?
Dizer que estava perdida foi o maior erro naquela noite. Ou ter ido atrás de um cara que nem conhece, que só ouvira pedir desculpas foi o maior? À essa altura não importava mais.
- Precisa de ajuda, é, princesa?
Aquele sorriso amarelo e escuro lhe deu um arrepio na alma. Correu. Correu tudo que pôde e um pouco mais. Chegou à uma praça. "Ufa". Era a praça onde pegaria seu alternativo. Nunca se sentira tão aliviada. Nunca respirara ar mais puro que aquele.
Entrou na van. Sentou e deixou o corpo cair sobre a poltrona, que tinha uma parte rasgada, que roçava sua coxa. Não importava. Só queria estar ali, sentir o calor de um lugar seguro.
Entrara tão afoita que nem repara na figura familiar que estava sentada do seu lado. Lendo um livro do Pessoa, e brincando com um chaveiro em forma de cão estava ele: o cara da rua, o vulto, a sombra que ela perseguira e por quem passara tanto perigo.
Seu coração começou a palpitar. Batia tão forte que qualquer um poderia ouvir. E ele ouviu. Parou de ler.
- Está tudo bem, moça? - Perguntou com um aquele timbre incofundível que viria a ecoar por tempos em sua mente.
Ela não conseguia se mexer, não sabia o que dizer. Seu coração já estava quase saltando de sua boca, suas mãos estavam trêmulas, lembrando de tudo que passara por aquela voz. Sentiu vergonha, sentiu tristeza. Tudo isso foi só carência? O que aconteceu? Por que tanto desconcerto por causa de uma voz?!
Ela só soube balançar a cabeça afirmativamente.
Ele deu um sorriso. Um sorriso limpo, um sorriso sincero, mas distante. Um sorriso totalmente diferente daquele que vira na ruela escura. Se sentiu mais calma, mas sua vergonha não diminuira. A van começou a andar e ela se sentia derrotada. Não conseguira nem esboçar um sorriso, nem uma palavra a viagem toda.
Ele chegou ao seu destino. Pediu licença com aquele sorriso acalmante, pra poder passar. Sua calça encostando na perna dela lhe deu uma vontade de se levantar e ficar no mesmo ponto que ele. Mas a coragem não foi suficiente. Ele saltou. Ela ficou olhando da janela. Ele também parou, e a fitou, com aqueles olhos indiferentes. Ele foi se afastando das vistas dela. A chuva aumenta. Ele vira as costas e sai andando devagar, mesmo em meio a chuva.
E ele nunca saberá o que uma menina fez pela sua voz, e nem o que ela sente e o que vai sentir ainda por muito tempo por conta daquele sorriso.

5 comentários:

  1. É bom, bem escrito, só que achei muito pra menininha, exemplo: eu não sei e nem quero saber o que é roçar nas calças de um homem. Mas pra quem é mulher.
    E eu já passei pelas ruelas que a mesma passou, parece mesmo o vale da morte.

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  2. Achei bem escrito, com um início e meio envolvente, e com um desfecho a altura.
    Realmente, as coisas acontecessem, as pessoas passam na nossa vida e na maioria das vezes, elas não tem idéia de como são importantes por seus pequenos atos.

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  3. Lêda é a personificação de um paradoxo que, em algum momento da vida, inquieta a gente [sim, eu também já fui Lêda]. Se apegar estranha e loucamente a alguma evidência que faz parecer tão nosso, tão real, aquilo que pode não passar do corriqueiro, do esperado, da etiqueta. E depois, por vergonha, frustração ou tão somente comodismo, assistir calado e triste a ida sem adeus do que, quem sabe, poderia se tornar algo além do trivial.
    Lisa, você, mais uma vez, foi muito pertinente na sua leitura de mundo, de gente. Na sua auto-leitura. Me senti contemplada. E não só, parei pra reler e me peguei divagando em reflexões. Não é qualquer texto que tem esse poder. Hahaha ;*

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  4. É, é um conto. Cada ponto e cada reação na medida certa. Cada letra seguindo de outra com uma razão. Coisa mais linda do mundo.
    E essa bipolardade de coragem e coverdia está presente em todas nós. Por isso acho, melhor, concordo com a Aava. O texto exprime toda a confusão que há na nossa cabeça, eu vejo muito além de um conto hetero-diegético, eu vejo um pouco de mim, um pouco de cada pessoa e muito, muito de Lisa.





    Amo você.

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