quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Tanglomanglo

Quando Jasão conquistou o velocino de ouro e a nau Argos
                                              velejava com Medéia rumo à Grécia, o sonho da princesa parecia
realidade. (...) Quem ainda se lembrava do monstro? Contudo,
para o herói, o monstro jamais é um só. Por isso se deixa
esquecer; todo monstro é um prelúdio ao monstro sucessivo. E
mais fácil que a princesa seja esquecida. Os monstros possuem
uma identidade difusa, que se encontra e se repete em cada
fragmento do monstro, ao passo que cada mulher é um perfil e, a
todo momento, um novo perfil pode encobrir os outros. Assim, as
histórias entre os heróis e as princesas tendem a terminar mal
(CALASSO, 1990, p. 225).





            A faca, o porco, velas e sangue. “Se arrepender, vai se arrepender”. Vela preta, vela vermelha. “Ah, se vai”. Cuspida. Baforada. Risada. Risadas. Ele está andando, como se não percebesse todo mal que o açoita furtivamente. “Alguma coisa tá errada”. Seu corpo adormece. Moedas, cachaça. Cuspida. Baforada. Anda como automático. Seu olho adormece. Tem lembrança da infância. Não aquelas que costuma ter, mas lembranças que nem sabia que existiam brotam em sua mente como enxurrada de uma represa partida. Gritos. Brigas. Um soco. Ele está ali, olhando. Não faz nada. “Por que você não faz nada?”. Ele saiu de casa de novo. “SEU MERDA!”. Aquele olhar o encontra. Ela o odeia. Ela te odeia. “Mas esse menino parece tanto com o pai”. Cuspida. Baforada. A faca na garganta. O porco. “Sai daqui, menino!” Sua cabeça adormece. Tudo fica escuro. Vela preta, vela vermelha. A chama parece recordá-lo do caminho até aquela casa a tanto tempo esquecida. Não queria entrar ali. Não queria estar ali de novo. Mas está. Moedas, cachaça. Cuspida. Baforada. Uma faca. Ele ouve a risada dela. Ela deveria ter cuidado dele. Ela deveria ter dado mais atenção. Não sabia ser materna. Não sabia ser. Ele saiu de casa de novo. Acompanhado. Dessa vez parece que não volta mais. As vozes, que começaram em um sussurro, estão cada vez mais altas. Tão altas que ele não consegue nem ouvir as pessoas falando ao seu redor. Elas parecem estar falando de você. Elas estão falando de mim. Elas não fazem ideia do que você vai fazer. Elas não têm ideia do que eu vou fazer. Abriu o portão enferrujado, sem perceber o rangido. Viu Santo Antônio no azulejo perto do telhado. Parou. Cuspida. Baforada. Tremores. Cachaça. Cuspida. Gargalhada. Seguiu seu caminho automaticamente. A porta de madeira, que parecia tão pesada em outra época está entreaberta. Passa pela sala e chega à cozinha. Na gaveta do armário lhe espera a faca de churrasco que tantas vezes viu sua avó afiar. De relance olha para a varanda. Ele está lá, reclinado na rede. Vê apenas parte do braço e seus pelos grossos protuberantes. A adrenalina toma conta do seu corpo e, como uma dança cerimonial, ele titubeia, vacila, hesita, oscila. Em questões de segundos, sua mão se projeta ao alto e com um golpe forte e certeiro, atinge algo. Cachaça, cuspida. Baforada. Muitas gargalhadas. Um choro. Choro de criança irrompe pela casa. Ela estava naquele colo. Ainda sobre o efeito tórpido, passa a faca pela garganta dele também, espirrando em seu rosto e corpo, criando rapidamente uma vasta piscina rúbida no chão. Os dois corpos caem abrupta e bruscamente no chão. Gargalhada. Olha o que você fez! Em outro lugar, o pequeno corpo suíno ainda está gritando enquanto aquela figura ali, de pé, contempla seu massacre. O que foi que você fez? Lágrima. Gargalhada. O que eu fiz? É quando as últimas gotas porcinas estão rolando que ele dá cabo de vez daquela cena. Um último golpe. Bem no estômago. O joelho também machuca com o peso da gravidade sobre seu corpo. Agora são três. Silêncio. Não há remorsos.