sábado, 30 de dezembro de 2017

Raposa.

Não posso deixar de perceber que olho para você como Narciso contemplava seu próprio reflexo e amava aquele ser tão intrinsecamente seu. Mas seus olhos não são os meus. Este espelho na água reproduz algo que não sou eu. Um híbrido hermafrodita, lutando para se encontrar entre gêneros e desejos. Um animal acorrentado em si mesmo e às barras de uma jaula. Você esteve sempre aí? Não te conhecia até ontem, quando saturno em domicílio emanava seus primeiros raios astrológicos, deixando para trás o flecheiro, que talvez elucidasse qualquer sentimento confuso que tenho hoje. Mas você, puro Sol, não acreditaria em tamanha bobagem. É a falta de fé em si mesmo, a confusão anímica, a tristeza e o torpor diante deste reflexo que me faz duvidar muitas vezes que aquela imagem seja eu. 
Nunca poderei te tocar, sem que a face das águas se desmanchem criando um enorme borrão cristalino. Não te abraçarei como faço em meus sonhos, pois, diferente do jovem Narciso, sei dos riscos de se jogar em meio ao vazio pelágico. Mas esse reflexo é tão meu que a necessidade de tanger se torna desnecessária e muitas vezes sem sentido. Nós não fazemos sentido. Não há qualquer razão plausível que explique nosso encontro ou esse elo imediato. Gosto de nos imaginar pedaços de uma mesma alma, quebrada no infinito muito antes de se fazer matéria. E que nos encontramos, mas nunca seremos por inteiro, já que somos feitos de cosmos, matéria eterna e pura arte. Somos reflexo. Somos o inacabado, esperando que um final chegue para nós, eventualmente. 

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Estrangeiro


Não sei dizer ao certo o que nele realmente chamou minha atenção. Seria o seu rosto tão ordinário quanto centenas outros que eu já tenha mirado? Ou seria seu tom de pele pálido e sem sal, combinando perfeitamente com seus olhos castanho vulgar? E o sorriso quase falso, pretensioso e insolente que destila a todos por onde passa, seria essa minha fonte de fascinação? Talvez a resposta esteja no seu jeito altivo, de menino criado em ilusões de grandeza, de estrangeiro em terras não tão distantes, mas longe o suficiente para se fazer único em meio a muitos. Gosto como se ilude sem nem perceber que apenas você e alguns poucos acreditam no conceito idealizado para e sobre você. O que me deslumbra é me fazer pensar que exista frivolidade em um nível tão magnânimo. É o atrevimento, a audácia e ao mesmo tempo, a ingenuidade. É como me faz sentir: como um povo prestes a ser colonizado, que aceita qualquer quinquilharia em troca de seus bens preciosos. É a admiração ao estrangeiro, ao modo como fala, como age e como se comporta. E, assim, minhas terras vão sendo conquistadas pouco a pouco, enquanto me divirto em seus jogos, em sua utopia megalomaníaca que cega meu intelecto quase que por completo. 

(...)