quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Passos


Pronto. É a hora da verdade. Se eu digo sim, vou estar presa a uma só pessoa pro resto da minha vida. Cara, a mesma pessoa pro resto da vida! E se eu disser não? Porra, já se passaram seis anos. SEIS anos. Tenho nem desculpa pra dizer não. Tá, vou dizer sim, vamos nos abraçar, ele vai chorar (como sempre) e tudo vai ficar bem. Mano, olha pra cara dele! Isso é bem mais que um pedido de casamento, é um ato de desespero! Calma, relaxa. Pensa nas coisas boas. Pensa em como ele adora tudo o que você fala. Em como ele te olha como se fosse a pessoa mais inteligente do mundo. Meu Deus, o que será que ele tem na cabeça? Eu? Eu pesquiso poemas no google pra recitar! Acho que nem tenho um livro decente de algum poeta renomado. E ele acha que eu sou a pessoa mais poética que ele conhece! Não, não. Vai dar certo sim. Será? Ele tem aquela coisa de gesticular como um louco pra contar qualquer coisa. Nossa, como isso me irrita! Se eu não odiasse tanto passar vergonha talvez eu estivesse nem aí pra isso, mas ele precisa mesmo ser tão escandaloso? Mas olha a grossura desse anel... Minhas amigas encalhadas ficariam com a maior inveja. Ah, sim... Se eu aceitar a primeira foto pro instagram vai ser desse anel. Porque tanta dúvida? (eu sabia que isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde) Tá, mas nunca é algo para o qual se está realmente preparada. Ok. Vamos lá. Essa cena tá ficando embaraçosa e já tá enchendo de curiosos pra olhar. Mas porra, pedir alguém em casamento em plena praça de alimentação do shopping? É merecer ficar aí esperando, só pra passar vergonha mesmo. Tá bom, tá bom... eu o amo. Definitivamente o amo. Vamos logo terminar com isso.

- Ai, meu Deus! Claro que eu aceito!!


[Trabalho apresentado à matéria Oficina de texto narrativo sobre a proposta de Fluxo de Consciência]

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Da ironia dos vícios.

Jorge só saía de casa com seu isqueiro no bolso. Estava sempre às ordens quando alguém precisava de um "foguinho" para o cigarro. Era como um amuleto da sorte, que o lembrava de uma época em que, como  dizia, "curtia uma chupeta do diabo". E completava sempre: "mas Jesus me libertou a mais de 20 anos, amém!". Dia desses Jorge adoeceu e foi parar no hospital. E de lá não voltou mais. Causa do óbito: enfisema pulmonar.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Herói boiadeiro


Conhecido por suas milhares de conquistas nos campos de batalha, nosso herói conquistou fama, dinheiro, mulheres e até mesmo homens em toda história de sua vida. Era conhecido como “Deus cabeludo”, por conta de suas madeixas, que se tornaram um símbolo de beleza e poder. Crianças em toda sua era fugiam do aço afiado das tesouras de suas criadas, para poderem - pelo menos em aparência - ser como seu herói. Mas seu tempo não fora outrora, em uma época mitológica muito distante não. Seu tempo foi logo ali, perto o suficiente para eu lembrar de tê-lo visto em suas lutas constantes com bois na arena perto de um sítio em que eu vivia com minha família. Sim, seu campo de batalha era a arena dos boiadeiros, onde dava seu show todo final de semana. Seu sonho era ser reconhecido em todo Brasil. Filho de Oxóssi e sabido do Catimbó, trazia em seu sangue o quente do sertão, e o cheiro de carne queimada pelo sol das grandes caminhadas que fazia, sempre tocando seu berrante para guiar o seu gado. Como quase todo herói sertanejo, teve sua infância sofrida, marcada pela fome e pela morte. Seu pai, uma galalau dado a jogos e mulheres, perdeu todo dinheiro da família e a vida em uma arenga de bar. Sua mãe e irmã eram tudo que nosso herói tinha em vida e era por elas que ele lutava. E como lutava! Quando entrava na arena, era como se ele se transformasse no próprio Caboclo Boiadeiro, dançando com uma coreografia intricada de passos rápidos e ágeis, que o fazia parecer um dançarino mímico, lidando bravamente com os bois. E assim sua fama só crescia em todo sertão.
Mas como dizia minha vó, “a fruta não cai longe da árvore”, e com o nosso herói boiadeiro não deu outra: nasceu com gosto pra bebida forte e um coração fraco para os assuntos do amor. Se desmantelou por uma cabrocha que já tinha dono e foi nela que seu coração se perdeu. Mas por conta do amor não correspondido da Pequena, o herói danou-se a beber e quase toda noite era encontrado pela estrada, caminho de sua fazenda, com o andar sonolento e olhar pesado – coisa de quem ama do jeito errado. E em uma dessas noites de tristeza alcoólica, o herói cambaleante foi até a fazenda da Tal que lhe roubara a sanidade, tomar satisfação pela ilusão que ele mesmo criara. Confuso e atordoado, se viu entrando em um pasto, onde deu de cara com o Touro chamado Pesadelo, conhecido por sua impiedade e força. Nosso herói então, se vê frente a frente com seu destino. Bêbado e à beira da morte, ele dá um grito de desespero, chamando por seu senhor Caboclo Boiadeiro, que lhe acudisse. Sob o som de um trovão, a entidade apareceu montada em um cavalo, vestido de cangaceiro e sorrindo, uma risada escarnecedora. O boi cai duro no chão e nosso herói, agonizante, olha para o espírito e não sabendo se pela bebida ou pela situação quase morte, vê o rosto de seu pai, sorrindo e zombado dele.
Não se teve mais notícias do Herói boiadeiro depois do ocorrido no sítio de Pequena, nem sobre o paradeiro de sua irmã e mãe. Há quem diga que foi pra cidade grande, tentar a vida junto com elas. Mas o grande fuxico foi que o Herói boiadeiro depois que matou o Touro Pesadelo à unha, fora chamado pelo próprio Oxóssi pra combater perigos do outro lado, tornando-se assim, padroeiro dos que combatem touro com as próprias mãos. 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Minuto


Pedro acordou com uma leve sensação de vazio. Era como se todo peso de sua vida tivesse sido tirado de seus ombros. Levantou-se, respirou fundo, mas sem sentir muito bem o ar que inspirava. Andou até a janela e, apesar do Sol estar a pino, não sentiu o calor queimar sua pele.  Olhou para o relógio, quase caindo de cima do criado mudo: 12: 52.  O fato de estar atrasado para o trabalho não o incomodou desta vez. Sempre fora um empregado dedicado, até mais do que deveria. Hoje não sentia necessidade de ser. Voltando a olhar pela janela, percebeu algumas pessoas vestidas de preto, entrando e saindo de sua casa, algumas com um semblante calmo, outras com olhar sombrio e perdido. Apesar de sentir algo familiar nelas, não as reconhecia. Desceu as escadas quase como se estivesse flutuando. Passou por um relógio de parede redondo: 12: 52. Um burburinho no ar o deixa curioso. Quem são essas pessoas, e o que fazem na minha casa? Toby, seu cachorro, o olha e começa a uivar. Pedro se abaixa, chamando-o para um afago, mas como resposta recebe uivos mais frenéticos. Percebe então, que não se lembra de como chegara a sua casa. Alguns flashes do dia anterior passam pela sua cabeça. Lembra-se de ter acordado seis em ponto, como todos os dias, se arrumado e ido ao trabalho. No caminho havia parado para tomar o café na birosca onde há meses paquerava uma garçonete. Ah, Luiza. Santa Luiza que já tinha seu pedido decorado: pão na chapa e um pingado. Melhor forma de começar o dia: café com Luiza. Lembrou-se também que Paulo, seu assistente, o chamara pra almoçar fora, pois tinha algo importante para contar a Pedro. Depois de uma pesada conversa sobre o crescimento profissional de seu assistente e a chance de perdê-lo para a contabilidade de outra empresa, lembrou-se de sair do restaurante e atravessar a rua sem olhar pros lados. O relógio em seu pulso – presente de sua mãe – se espatifa pelo chão. 12: 52. Acorda daquelas lembranças e, atordoado, começa a procurar naquelas pessoas alguém conhecido que pudesse lhe dizer o que acontecera a ele. Enquanto caminha, procurando um rosto amigo, nem percebe que não estava mais passando entre as pessoas, mas por elas. Seu susto é enorme quando para e se vê parcialmente dentro de um homem, que se parecia muito com ele, só que mais velho. Sente um grito brotar em sua garganta, mas não há som. Olha para uma senhora que segura com carinho um relógio de pulso quebrado em sua mão. Aproxima-se e fica em paz. Sentindo uma luz penetrar todas as partes do seu corpo, o conduzindo para cima, olha mais uma vez para aquele objeto dourado. O ponteiro dos segundos se mexe preguiçosamente:  12: 53.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Ausência


21:00 – Saí do transe ouvindo uma sirene que ia ficando cada vez mais alta, como se quisesse literalmente entrar em meu cérebro. Atônito e sentindo um forte cheiro de sangue, percebo meu moleton totalmente banhado naquela seiva rubra. Um corpo jazia perto da pia da cozinha. Quando o policial esfregou meu rosto no chão frio e sujo, me algemando, pude enxergar o brinco que ainda pendia no que sobrara daquela decrépita orelha.
20:00 -  Desço pelas escadas. Lábios doídos de tanto mordê-los. Uma loucura extrema fala ao meu ouvido com sussurros quase inexprimíveis, que se confundem em minha mente. Passo pela bancada da cozinha ainda ouvindo o som desafinado da voz que cantarola uma antiga música: “Eu perguntava: Do You Wanna Dance?”. Quando pego a faca de cima da bancada, meu corpo responde àquela pergunta e se entrega a uma funesta dança, coordenadamente: Costas. Braço. Pescoço. Orelha... Um corpo cai, sucumbindo aquele espetáculo fúnebre. Eu mesmo caio de joelhos, contemplando a poça de sangue crescendo em minha direção. Tudo fica escuro.
15:00 – Uma sirene me acorda, avisando que o intervalo começou. Hoje não estou para conversa, apesar da insistência de Lea em conversar sobre nosso relacionamento. Jogo meia dúzia de palavras ao vento e a despisto. Precisava me concentrar, reunir força e coragem para o que me esperava ainda hoje. Cada minuto parece uma eternidade.
Por volta de 12:00 – Chego à copa e o almoço está servido. Bem servido. Não tenho do que reclamar, afinal, materialmente nada me faltava. Mas sentado ali, sozinho, penso em como as cadeiras parecem tão pequenas agora. Quando criança, o vazio daqueles lugares era bem maior. A gente cresce, as coisas diminuem. Materialmente.
07:30 – Indo em direção ao banheiro, me pego pensando no tamanho das coisas. Tive que crescer rápido, já que nunca tive com quem contar de verdade. Pequenas coisas, como escovar os dentes, amarrar cadarços ou um primeiro barbear parecem grandes feitos quando se tem alguém com quem compartilhar. Para mim tudo fora sempre tão corriqueiro, tão ínfimo. Nunca pude expor minhas pequenas conquistas. Na minha vida presença e ausência sempre andaram juntas, aprendi a conviver com isso, mas hoje escolhi apenas uma. E a gente sempre opta pelo maior.
07:00 – O despertador toca sonolento. Como se minha alma entrasse de súbito em meu corpo, acordo em um violento impulso: Hoje vou matar minha mãe. 



Texto criado na Oficina de Produção de Texto Narrativo, sob proposta de escrita como diário ou descrição.