sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Ausência


21:00 – Saí do transe ouvindo uma sirene que ia ficando cada vez mais alta, como se quisesse literalmente entrar em meu cérebro. Atônito e sentindo um forte cheiro de sangue, percebo meu moleton totalmente banhado naquela seiva rubra. Um corpo jazia perto da pia da cozinha. Quando o policial esfregou meu rosto no chão frio e sujo, me algemando, pude enxergar o brinco que ainda pendia no que sobrara daquela decrépita orelha.
20:00 -  Desço pelas escadas. Lábios doídos de tanto mordê-los. Uma loucura extrema fala ao meu ouvido com sussurros quase inexprimíveis, que se confundem em minha mente. Passo pela bancada da cozinha ainda ouvindo o som desafinado da voz que cantarola uma antiga música: “Eu perguntava: Do You Wanna Dance?”. Quando pego a faca de cima da bancada, meu corpo responde àquela pergunta e se entrega a uma funesta dança, coordenadamente: Costas. Braço. Pescoço. Orelha... Um corpo cai, sucumbindo aquele espetáculo fúnebre. Eu mesmo caio de joelhos, contemplando a poça de sangue crescendo em minha direção. Tudo fica escuro.
15:00 – Uma sirene me acorda, avisando que o intervalo começou. Hoje não estou para conversa, apesar da insistência de Lea em conversar sobre nosso relacionamento. Jogo meia dúzia de palavras ao vento e a despisto. Precisava me concentrar, reunir força e coragem para o que me esperava ainda hoje. Cada minuto parece uma eternidade.
Por volta de 12:00 – Chego à copa e o almoço está servido. Bem servido. Não tenho do que reclamar, afinal, materialmente nada me faltava. Mas sentado ali, sozinho, penso em como as cadeiras parecem tão pequenas agora. Quando criança, o vazio daqueles lugares era bem maior. A gente cresce, as coisas diminuem. Materialmente.
07:30 – Indo em direção ao banheiro, me pego pensando no tamanho das coisas. Tive que crescer rápido, já que nunca tive com quem contar de verdade. Pequenas coisas, como escovar os dentes, amarrar cadarços ou um primeiro barbear parecem grandes feitos quando se tem alguém com quem compartilhar. Para mim tudo fora sempre tão corriqueiro, tão ínfimo. Nunca pude expor minhas pequenas conquistas. Na minha vida presença e ausência sempre andaram juntas, aprendi a conviver com isso, mas hoje escolhi apenas uma. E a gente sempre opta pelo maior.
07:00 – O despertador toca sonolento. Como se minha alma entrasse de súbito em meu corpo, acordo em um violento impulso: Hoje vou matar minha mãe. 



Texto criado na Oficina de Produção de Texto Narrativo, sob proposta de escrita como diário ou descrição.

6 comentários:

  1. Hmmmm...
    matar a mãe.

    Quantas vezes se mata? Não só a mãe...


    Boa oficina, Lisa.

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  2. Se não matar algumas coisas, outras (melhores) não nascem! Brigada pelo carinho! ♥

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  3. "se te irares contra o teu irmão, já estás o matando"
    fora isso: medo e orgulho de você, sempre essa dialética toda

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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Agora já podem massacrar/elogiar/desdenhar.