quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Escrever/ler nem sempre é compreender.

Aprendi com Marguerite Duras que a escrita é uma coisa estranha. É a dor dos que vieram antes de nós, é a dor humana, essa que conhecemos de ouvir falar nas histórias e na História, essa mesma que carregamos quase como herança genética. É a voz do animal que reconhecemos na noite, que se confunde com os nossos próprios uivos. Ainda sobre animais, Deleuze nos mostra a ideia de território e mais ainda a necessidade de se ultrapassar as barreiras dessa área. É importante criar uma zona de conforto, afinal, isso acontece naturalmente entre nós escritores, mas a mágica acontece exatamente quando nos dispomos a ir além, a traspassar esse território. “E o território só vale em relação a um movimento através do qual se sai dele” diz Deleuze em Abecedário. Isso já nos mostra uma característica do eixo pensamento-selvagem. Não é só escrever sobre animalidades, mas pensar e criar como os animais. É sentir com o corpo, com os sentidos. É deixar que o nosso instinto tome conta, é deixar esse ser animal transbordar na página em branco e sujá-la com seus fluidos animalescos. 
E compreender também é arbitrário. Falo daquela compreensão que sempre tentamos ter quando lemos ou escrevemos algo, aquela de que tudo precisa ter um sentido expresso seja implícita ou explicitamente. Escrever/ler nem sempre é compreender. Muitas vezes a grande potência de uma obra está justamente na incompreensão dela. É como o ato de falar a língua dos anjos para alguns cristãos. Eles entendem que só conseguem falá-la quando desligam o pensamento e deixam que o espírito santo tome conta do centro da fala do indivíduo e assim, fale através deles. Não compreendem que estão falando, mas sentem a força daquelas palavras estranhas em seus poros, em suas almas, na pontas dos seus dedos. É como Vico expressa ainda em Ciência Nova: “Porque assim como metafisica raciocinada ensina ‘homo intelligendo fit omnia’*, assim esta metafísica demonstra que ‘homo NON intelligendo fit omnia’; e talvez esta seja mais verdadeira do que aquela, pois o homem, ao entender, abre sua mente e compreende tais coisas, mas ao não entender ele de si faz essas coisas e nelas se transforma. ”

Incorporar o animal é incorporar o que nos é estranho dentro de nós.

Pensamos no outro como algo alheio a nossas vidas, mas o outro é tão intrinsecamente eu. É através de uma resolução antropofágica que enriquecemos não somente a escrita, mas a nós mesmos. O choque com outra cultura ou outras formas de pensar e agir faz com que isso se torne automaticamente parte de mim, faz com que algo mude dentro de nós e o que me afeta se torna meu. Segundo Osvald de Andrade: “Só me interessa o que não é meu”. E é assim que crescemos como escritores, como leitores e como seres humanos: absorvendo o estranho, criando ligações animalescas com nosso interior e com o interior alheio, compreendendo e não compreendendo essa força universal que une todos os seres, nos tornando mais animais e humanizando o que é fera.


* "Um homem de entendimento é tudo"

2 comentários:

  1. Sempre achei que o homem de NÃO entendimento era tudo... talvez por eu mesmo ser meio devagar, prncipalmente pra acompanhar seu cérebro. Vc é incrível

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    1. O não entender, em si só, já é maravilhoso! E nem precisa de muita coisa pra me acompanhar, para de graça! Basta viver à flor da pele que vc entende hauiehoiauehiue brinks! Saudade, pessoa!!

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Agora já podem massacrar/elogiar/desdenhar.