Aprendi com Marguerite Duras que a escrita é uma coisa
estranha. É a dor dos que vieram antes de nós, é a dor humana, essa que
conhecemos de ouvir falar nas histórias e na História, essa mesma que
carregamos quase como herança genética. É a voz do animal que reconhecemos na
noite, que se confunde com os nossos próprios uivos. Ainda sobre animais,
Deleuze nos mostra a ideia de território e mais ainda a necessidade de se
ultrapassar as barreiras dessa área. É importante criar uma zona de conforto,
afinal, isso acontece naturalmente entre nós escritores, mas a mágica acontece exatamente
quando nos dispomos a ir além, a traspassar esse território. “E o território só
vale em relação a um movimento através do qual se sai dele” diz Deleuze em Abecedário.
Isso já nos mostra uma característica do eixo pensamento-selvagem. Não é só
escrever sobre animalidades, mas pensar e criar como os animais. É sentir com o
corpo, com os sentidos. É deixar que o nosso instinto tome conta, é deixar esse
ser animal transbordar na página em branco e sujá-la com seus fluidos
animalescos.
E compreender também é arbitrário. Falo daquela compreensão que
sempre tentamos ter quando lemos ou escrevemos algo, aquela de que tudo precisa
ter um sentido expresso seja implícita ou explicitamente. Escrever/ler nem
sempre é compreender. Muitas vezes a grande potência de uma obra está
justamente na incompreensão dela. É como o ato de falar a língua dos anjos para
alguns cristãos. Eles entendem que só conseguem falá-la quando desligam o
pensamento e deixam que o espírito santo tome conta do centro da fala do
indivíduo e assim, fale através deles. Não compreendem que estão falando, mas sentem
a força daquelas palavras estranhas em seus poros, em suas almas, na pontas dos
seus dedos. É como Vico expressa ainda em Ciência Nova: “Porque assim como metafisica
raciocinada ensina ‘homo intelligendo fit omnia’*, assim esta metafísica demonstra
que ‘homo NON intelligendo fit omnia’; e talvez esta seja mais verdadeira do que
aquela, pois o homem, ao entender, abre sua mente e compreende tais coisas, mas ao
não entender ele de si faz essas coisas e nelas se transforma. ”
Incorporar o animal é incorporar o que nos é estranho dentro
de nós.
Pensamos no outro como algo alheio a nossas vidas, mas o
outro é tão intrinsecamente eu. É através de uma resolução antropofágica que
enriquecemos não somente a escrita, mas a nós mesmos. O choque com outra
cultura ou outras formas de pensar e agir faz com que isso se torne
automaticamente parte de mim, faz com que algo mude dentro de nós e o que me
afeta se torna meu. Segundo Osvald de Andrade: “Só me interessa o que não é
meu”. E é assim que crescemos como escritores, como leitores e como seres humanos:
absorvendo o estranho, criando ligações animalescas com nosso interior e com o
interior alheio, compreendendo e não compreendendo essa força universal que une
todos os seres, nos tornando mais animais e humanizando o que é fera.
* "Um homem de entendimento é tudo"
* "Um homem de entendimento é tudo"
Sempre achei que o homem de NÃO entendimento era tudo... talvez por eu mesmo ser meio devagar, prncipalmente pra acompanhar seu cérebro. Vc é incrível
ResponderExcluirO não entender, em si só, já é maravilhoso! E nem precisa de muita coisa pra me acompanhar, para de graça! Basta viver à flor da pele que vc entende hauiehoiauehiue brinks! Saudade, pessoa!!
Excluir