Quando Jasão conquistou o velocino de ouro e a nau
Argos
velejava
com Medéia rumo à Grécia, o sonho da princesa parecia
realidade. (...) Quem ainda se lembrava do monstro?
Contudo,
para o herói, o monstro jamais é um só. Por isso se
deixa
esquecer; todo monstro é um prelúdio ao monstro
sucessivo. E
mais fácil que a princesa seja esquecida. Os monstros
possuem
uma identidade difusa, que se encontra e se repete em
cada
fragmento do monstro, ao passo que cada mulher é um
perfil e, a
todo momento, um novo perfil pode encobrir os outros.
Assim, as
histórias entre os heróis e as princesas tendem a
terminar mal
(CALASSO, 1990, p. 225).
A
faca, o porco, velas e sangue. “Se arrepender, vai se arrepender”. Vela preta,
vela vermelha. “Ah, se vai”. Cuspida. Baforada. Risada. Risadas. Ele está
andando, como se não percebesse todo mal que o açoita furtivamente. “Alguma
coisa tá errada”. Seu corpo adormece. Moedas, cachaça. Cuspida. Baforada. Anda
como automático. Seu olho adormece. Tem lembrança da infância. Não aquelas que
costuma ter, mas lembranças que nem sabia que existiam brotam em sua mente como
enxurrada de uma represa partida. Gritos. Brigas. Um soco. Ele está ali,
olhando. Não faz nada. “Por que você não faz nada?”. Ele saiu de casa de novo.
“SEU MERDA!”. Aquele olhar o encontra. Ela o odeia. Ela te odeia. “Mas esse
menino parece tanto com o pai”. Cuspida. Baforada. A faca na garganta. O porco.
“Sai daqui, menino!” Sua cabeça adormece. Tudo fica escuro. Vela preta, vela
vermelha. A chama parece recordá-lo do caminho até aquela casa a tanto tempo
esquecida. Não queria entrar ali. Não queria estar ali de novo. Mas está.
Moedas, cachaça. Cuspida. Baforada. Uma faca. Ele ouve a risada dela. Ela
deveria ter cuidado dele. Ela deveria ter dado mais atenção. Não sabia ser
materna. Não sabia ser. Ele saiu de casa de novo. Acompanhado. Dessa vez parece
que não volta mais. As vozes, que começaram em um sussurro, estão cada vez mais
altas. Tão altas que ele não consegue nem ouvir as pessoas falando ao seu
redor. Elas parecem estar falando de você. Elas estão falando de mim. Elas não
fazem ideia do que você vai fazer. Elas não têm ideia do que eu vou fazer.
Abriu o portão enferrujado, sem perceber o rangido. Viu Santo Antônio no
azulejo perto do telhado. Parou. Cuspida. Baforada. Tremores. Cachaça. Cuspida.
Gargalhada. Seguiu seu caminho automaticamente. A porta de madeira, que parecia
tão pesada em outra época está entreaberta. Passa pela sala e chega à cozinha.
Na gaveta do armário lhe espera a faca de churrasco que tantas vezes viu sua
avó afiar. De relance olha para a varanda. Ele está lá, reclinado na rede. Vê
apenas parte do braço e seus pelos grossos protuberantes. A adrenalina toma conta
do seu corpo e, como uma dança cerimonial, ele titubeia, vacila, hesita,
oscila. Em questões de segundos, sua mão se projeta ao alto e com um golpe
forte e certeiro, atinge algo. Cachaça, cuspida. Baforada. Muitas gargalhadas. Um
choro. Choro de criança irrompe pela casa. Ela estava naquele colo. Ainda sobre
o efeito tórpido, passa a faca pela garganta dele também, espirrando em seu
rosto e corpo, criando rapidamente uma vasta piscina rúbida no chão. Os dois
corpos caem abrupta e bruscamente no chão. Gargalhada. Olha o que você fez! Em
outro lugar, o pequeno corpo suíno ainda está gritando enquanto aquela figura ali,
de pé, contempla seu massacre. O que foi que você fez? Lágrima. Gargalhada. O
que eu fiz? É quando as últimas gotas porcinas estão rolando que ele dá cabo de
vez daquela cena. Um último golpe. Bem no estômago. O joelho também machuca com
o peso da gravidade sobre seu corpo. Agora são três. Silêncio. Não há remorsos.